terça-feira, 6 de setembro de 2011

Comentário crítico sobre São Bernardo

São Bernardo é um romance de confissão, aparentado com Dom Casmurro. Narrado em primeira pessoa, Paulo Honório, após o suicídio de Madalena, solitário, decadente, põe-se a registrar a história de sua ascensão a dono da Fazenda São Bernardo, de sua tragédia conjugal e da aridez de sua vida afetiva. Como em Dom Casmurro, estão representados dois tempos: o tempo do enunciado (os eventos que ocorreram na vida de Paulo Honório) e o tempo da enunciação ( o momento em que se escreve o livro).

A duplicidade temporal está ligada ao problema do foco narrativo, monopolizado por um eu-protagonista que , distanciado no tempo, abrange com o olhar toda sua vida e procura recapitulá-la, contando-a para si e para o leitor. É esse distanciamento que lhe dá uma pseudo-onisciência e reforça a impressão de objetividade derivada do caráter de Paulo Honório: rude, seco, direto. Todavia, quando entramos no presente da enunciação, esse distanciamento desaparece e o caráter ativo do memorialista está emperrado, paralisado pela derrota definitiva que foi a morte da esposa Madalena.

A narrativa ganha uma textura diferente: a linguagem seca do tempo do enunciado cede lugar à lamentação elegíaca do tempo da enunciação. O ritmo rápido da narrativa é substituído pelos compassos lentos de uma reflexão problematizadora, difícil e tortuosa: 'Aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo, bebendo café, suspendo às vezes o trabalho moroso, olho a folhagem das laranjeiras que a noite enegrece, digo a mim mesmo que esta pena é um objeto pesado. Não estou acostumado a pensar, levanto-me, chego à janela que deita para a horta.'

São Bernardo é uma das mais convincentes análises do sentimento de propriedade, do sentido atávico da posse, do ter anulando o ser, do cancelamento ético e afetivo na luta pela vida. As personagens e as coisas surgem no romance como meras modalidades do narrador, Paulo Honório, filho de pais incógnitos, guia de cego que se elevou a grande fazendeiro, respeitado e temido, graças à tenacidade infatigável com que manobrou a vida, pisando escrúpulos e sentimentos e visando por todos os meios o alvo que declara desde o início: 'O meu fito na vida foi apossar-me das terras de São Bernardo, construir esta casa...'. Como pano de fundo, o coronelismo, a sociedade patriarcal do Nordeste e a Revolução de 1930 e seus desdobramentos, que ecoam também no sertão e golpeiam o combalido Paulo Honório.

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